Mês: fevereiro 2020

A experiência do já, mas ainda não

Meditações no Salmo 40

Vivemos em tempos de imediatismo. Não gostamos de esperar. Somos impacientes. Especialmente quem vive nas cidades está desconectado da espera necessária para que as sementes deem seus frutos e as plantas suas folhas e flores. Afinal, é só ir em algum mercado 24h para obter tudo o que se deseja, de forma fast food. Dentro da comunidade de Jesus dos nossos dias, esse mesmo espírito de época prevalece. As relações que os religiosos tentam construir com Deus são tomadas pelo imediatismo. As orações que “determinam” que as doenças cessem, que os problemas acabem e que a prosperidade aconteça de maneira imediata – e quase mágica – adentraram, inclusive, em comunidades históricas que, tradicionalmente, foram mais rigorosas na interpretação da fé cristã à luz das Escrituras.

A realidade, que pode ser comprovada pela observação honesta – não se supera um processo depressivo, consegue um emprego e retoma a carreira ou resolve um problema de relacionamento “determinando” algo para Deus –, é que experimentamos em nosso relacionamento com o Eterno a experiência do já, mas ainda não. A espiritualidade bíblica, atestada na experiência de homens e mulheres de Deus nas Escrituras, mostra a possibilidade de termos nossa esperança no Senhor saciada aqui na terra (). Diante da nossa fragilidade em relação a vida, com toda sua complexidade, dificuldades, medos e situações desesperadoras, podemos esperar no Altíssimo! É real, é possível e existem testemunhos seguros de que o Pai intervém em relação aos seus filhos. O salmista sinaliza esse fato em sua oração. Deus olha para ele, respondendo ao seu clamor, seu pedido de socorro. Mais do que atenção, existe intervenção. O Senhor tira o salmista do fundo da lema em que se encontrava.

A ação de Deus muda a disposição existencial de quem ora, pois quem ora, embora não tenha seus problemas completamente solucionados, é capaz de agora cantar uma canção ao Libertador. O salmista chega a declarar que “feliz é aquele que deposita sua confiança em Javé” e consegue perceber que a espiritualidade que Deus espera da humanidade não está vinculada aos atos litúrgicos e cerimoniais (sacrifícios, ofertas e holocaustos), mas sim em realizar a vontade dEle na vida. Porém, o salmista não desfruta da plenitude deste relacionamento com o Senhor. É alguém em caminhada, em processo (ainda não). Nesse sentido, é alguém que espera com esperança, que ora, que clama, que se humilha, que pede por mais misericórdia e proteção. A espiritualidade bíblica não é apreciada de maneira imediata. Dura a vida.

Experimentamos muito do Deus que se deixa conhecer, mas continuamos esperando que Ele não demore em nos socorrer plenamente. Assim, permanecemos em jornada, com paciência e sempre esperando nEle. Que nossa atitude seja de humildade, dependência e de gente carente e necessitada, que reconhece o paradoxo do já, mas ainda não, sem cessar de esperançar.

A experiência da sensibilidade pelo que sofre

Meditações no Salmo 41

Se compadecer, ser tocado pela dor alheia, ter compaixão da situação dolorida do outro, viver a experiência da sensibilidade pelo que sofre… Esse tipo de disposição deveria ser óbvia para todo discípulo e discípula de Jesus de Nazaré. O Todo-Poderoso foi movido por esse tipo de disposição pela nossa vida. Logo, nada mais natural, uma vez que fomos alvo do amor de um Deus que se sensibilizou por nós em meio ao nosso sofrimento, angústia e perdição – em consequência da Queda –, que nos sensibilizássemos pela dor alheia. Louvado seja o nome do Senhor por todos os que dão testemunho de Cristo no mundo, sinalizando o Reino de Deus com tal disposição! Porém – infelizmente existe um “porém” –, nem sempre é assim. Segundo o salmista, feliz é a pessoa que se interessa pelo pobre, desamparado, enfermo, desafortunado, necessitado. Trata-se de alguém que desfrutará em sua vida de livramento, proteção e sustento do Pai.

Em outras palavras, quem vive com essa disposição no coração vive bem. Vive uma boa vida. Desfruta de bons sentimentos. É menos aborrecido com a existência. São pessoas resistentes para vida. Há paz nesse caminho. Do contrário, a experiência da vida é a experiência de quem não vive a sua, mas se intromete na dos outros. Invade, palpita, toca com malícia o sentimento alheio de quem está em estado de luto e dor. Ao invés de trazer alívio, de se sensibilizar e se compadecer, espiritualiza de forma leviana, fornecendo os motivos “espirituais” da dor do sofredor: “deve ter pecado”. Momento difícil para quem sofre é ser abandonado até pelos próprios “amigos” e ter neles o endosso de falas violentas dos que espalham mentiras e calúnias. A solidão é muitas vezes a casa de quem sofre. Mas – que bom que existe um “mas”! –, se você é o que sofre, tenha certeza: o Eterno está contigo e não se esqueceu de você, mesmo se os mais chegados te abandonaram.

Se você não é o que sofre, tenha certeza também: o caminho da espiritualidade bíblica não é o caminho de um juiz leviano e insensível, mas de alguém que desfruta da experiência da sensibilidade pelo que sofre. Na dor alheia, devemos nos interessar genuinamente pelo sofredor. Não fofocamos, não caluniamos, não mentimos. Tão somente nos importamos. Esse caminho traz vida e paz com Deus. O outro, certamente trará tristeza. Sejamos, pois, felizes, tornando-nos sinal de misericórdia e consolo para os que padecem as enfermidades da vida.

A experiência da saudade de Deus

Meditações no Salmo 42

Encarar a vida de frente não é tarefa fácil. Sentimos na caminhada o gosto de coisas que parecem que não deveriam estar por aqui. O gosto do luto. O gosto da tristeza. O gosto da decepção. O gosto do fracasso. E tantos outros gostos que não são palatáveis. Nossa alma corre sempre o risco de se encontrar abatida, deprimida e melancólica. Ao menos para quem tem o mínimo de sensibilidade diante das dores da existência, é nítido que em nossa trajetória sobram marcas interiores pelos acontecimentos e sentimentos aos quais somos submetidos.

Muitas lágrimas são derrubadas. Que resta para nós, meros humanos angustiados pela existência? Para onde iremos? Poderíamos nos entregar ao hedonismo e satisfazer todos os nossos apetites e vontades. Entretanto, como disse o sábio, “tudo é vaidade de vaidades”, e essa entrega aos prazeres não satisfaria em plenitude nossa alma tão angustiada. Poderíamos quem sabe nos entregar à uma vida sem sentido, nos rendendo ao caos. Mas o que faremos com a sensação que habita constantemente nosso coração acerca de um “algo mais” relacionado a vida? O salmista parece ter uma ânsia dentro de si. Não consegue conceber que os seus dilemas interiores são quem determinam sua esperança. Nem se entrega às paixões, nem rompe com o sentido último da vida. Por quê? Porque anseia por Deus. Tudo o que enfrenta de doloroso na vida – lágrimas, tristeza, sofrimento, agonia – o leva para uma certeza: somente o Senhor pode suprir o que me falta. O abatimento da alma do salmista é tensionado com a sua sede por Deus. Rubem Alves disse que a “saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar”.

Quem ora aqui está com saudade do Pastor, pois diante das dificuldades a alma quer voltar para aquele em quem existe plenitude. Não é a toa que quem ora relembra momentos em que esteve perto do Eterno, na casa de Deus. Saudade do Mistério, do Infinito, do Altíssimo, do provedor de sentido definitivo de uma vida marcada pela dor. A alma anseia pela Presença. A alma deseja a proximidade com aquele que É. Em meio ao turbilhão de emoções da vida, nossa alma anseia, deseja e espera por Deus. Deixemos a nossa alma ter sua saudade suprida pelo amor constante do Senhor. A experiência da saudade de Deus acontece somente com quem sabe que há algo de errado com esse mundo. Essa experiência acontece somente com quem põe toda sua esperança naquele que é seu Deus, e o deseja mais que tudo, pois só nEle há o refrigério que torna a vida verdadeiramente bela.

A experiência da perseverança no Senhor

Meditações no Salmo 44

O grande desafio do seguidor e da seguidora de Jesus não está relacionado, prioritariamente, em proclamar doutrinas acerca de Deus em um dado momento da vida. Quem segue a Jesus tem como grande desafio perseverar no caminho até o fim. Em outras palavras, nossa caminhada é mais importante do que um momento específico. Certamente seria mais fácil pensar e resumir a vida com Cristo em uma data e hora, assim, tudo estaria resolvido acerca da nossa espiritualidade. Não é essa a chamada de Deus para os seus seguidores. Somos chamados para perseverar no caminho (Mt 10:22; 24:13; Mc 13:13). A experiência da perseverança no Senhor é mais complexa pelo fato de envolver toda nossa trajetória com Deus. Em um momento específico de emoção, quebrantamento e rendição conseguimos proteger nossa devoção ao Pai com maior segurança, menos questionamentos e menos complexidades.

Em uma vida com muitos anos de caminhada, ao contrário, vivemos experiências complexas, decepções, oscilações emocionais, dores e sentimentos diversos, em que perseverar na fé é um desafio. Na vida existem altos e baixos. Momentos de segurança e insegurança. Momentos de paz e guerra. Felicidade e tristeza. Somos um turbilhão de emoções e complexidades que não damos conta de entender. Como experimentar a experiência da perseverança no Senhor? O salmista parece relatar esse choque de emoções e a sua experiência pode nos ajudar em nossa peregrinação. Em primeiro lugar quem ora reconhece que Iavé se revela na história. O Eu Sou não é um mero conceito. O Eterno se revelou no dia-a-dia de homens e mulheres, que puderam conhece-lo. Não é só meu Deus, mas o Deus dos nossos pais, avós, amigos, conhecidos. Temos segurança de que o Altíssimo se manifestou para os nossos antepassados e também para nós, em dado momento da nossa trajetória. Cada toque da graça de Deus na história é uma bandeira que devemos fincar em nossos corações, para sempre nos lembrarmos que Ele veio ao nosso encontro, cheio de Sua misericórdia. Essa convicção ajuda em nossos momentos de crise de fé. Em segundo lugar, o salmista é sincero sobre o momento ao qual enfrenta. Ele fala com toda sua honestidade. Sente-se abandonado, esquecido e desprezado por Deus. A visão dos judeus desta época é que tanto o bem como o mal vinham de Deus. Ele não hesita em questionar seu Senhor. Mesmo diante dos questionamentos Ele persevera em se voltar ao seu Rei e seu Deus.

Por fim, o salmista não cessa de esperar nEle. Mesmo inserido em um momento delicado em sua caminhada, persevera em esperar nEle, pois confia que somente Ele pode socorre-lo de forma plena, trazendo alento a sua dor e ao seu sofrimento momentâneo. Somos convidados não somente para crer em Deus, mas a perseverar em um relacionamento real com Ele. A caminhada tem seus desafios, mas devemos, como o salmista, nos lembrar de quem Ele é e faz, nos mantermos sinceros em nossas preces e confiar que somente nEle teremos satisfação plena para nossa alma.

A experiência do abrigo na fortaleza

Meditações no Salmo 43

Somos seres pequenos e limitados. Mesmo com dinheiro e poder em mãos o homem se depara com situações em que sua impotência exala de maneira cristalina. Não somos capazes de gerenciar muitos aspectos da vida. Não controlamos as enfermidades – dirá os antídotos! –, os sentimentos alheios – às vezes nem os nossos! – e muitas facetas do nosso amanhã são absolutamente imprevisíveis. Um grande problema da espiritualidade desenvolvida nos círculos cristãos é que os seguidores de Jesus tem como fundamento de sua fé elementos frágeis e que não dão respaldo e tão pouco pavimentam a longa estrada da vida espiritual. A família é muitas vezes um desses fundamentos. Entretanto, por mais importante e sagrada que ela seja, os laços familiares não são fortes o suficientes para serem fundamento da nossa fé. Não conseguimos gerenciá-los em definitivo: está fora do nosso controle. O que fazer quando se é traído pelo cônjuge?

Como vivenciar a experiência de um filho ou filha que não honra pai e mãe? Como superar problemas familiares graves, como a morte prematura ou sofrida de entes queridos? Se a família é fundamento da nossa fé e da nossa espiritualidade, perdemos o chão existencial da nossa vida. A crise mais severa se instala. A profissão também é um exemplo de fundamento inadequado. Quem garante que não haverá um corte na empresa em que atuamos? Quem garante que seremos sempre aptos para nossa função? Se fizermos da nossa carreira profissional – se aplica também para ministros religiosos! – a fundamentação da nossa espiritualidade, o risco de perdermos o rumo da vida é possível. Assim valeria para nossos relacionamentos, cheios de histórias de traições, mentiras e calúnias; a saúde, completamente além das nossas condições gerenciais; o dinheiro, cujo maior risco é torna-se dono do coração humano. O salmista parece ter percebido que o único abrigo seguro, a fortaleza da sua fé e espiritualidade, é o Eterno. Caso contrário, a alma sempre correrá o risco de adentrar uma tristeza profunda. Somente nEle temos garantida a alegria plena do nosso interior.

A esperança depositada no Altíssimo é fundamento seguro e certo para construirmos uma jornada consistente, embora certamente problemas e variáveis indesejadas são mais do que esperadas: são certas. Tendo o Senhor como rocha (Mateus 7:24-29; Lucas 6:46-49), podemos viver a experiência do abrigo na fortaleza. Como o salmista bem diz, Ele é juiz, luz, verdade, fonte plena de alegria, razão de canções de louvor, esperança e Salvador. Só Ele está nessas categorias. Certamente as demais áreas da nossa vida serão irrigadas na sabedoria do nosso Deus. Entretanto, é Ele quem nos dá segurança para um andar seguro e estável em nossa jornada espiritual.