Meditações no Eclesiastes 4.1-3
Ler a Bíblia é lidar com um tipo de texto perigoso, subversivo e que coloca em risco o poder dos opressores. Sim, a Bíblia. Não estamos falando aqui de Marx, de luta de classes ou de uma ideologia comunista. Bíblia. Qualquer pessoa honesta que leia o texto sagrado, deverá afirmar que a relação de opressão das classes dominantes de uma sociedade sobre as classes oprimidas é um dado recorrente nas Escrituras. Isso está no Êxodo, nos profetas e em Jesus nos evangelhos. Por que será? Simples: trata-se de um dado da realidade. Infelizmente a vida social se configura ao longo de muitos séculos por poderosos oprimindo os fracos.
O sábio, que busca observar a realidade nua e crua, detecta esse fato. E ao se deparar com essa dura constatação, lamenta e sofre. Sua dor não se deve apenas pela violência terrível praticada pelos opressores do mundo, mas também pela falta de consolo de quem sofre. Os marginais do mundo derramam as suas lágrimas e não há um ombro amigo e, pior, não há quem tente mudar essa duríssima realidade. Por isso, mais uma vez o sábio demonstra o seu pessimismo em relação aos humanos. Segundo ele, melhor morrer do que viver dentro dessa injustiça avassaladora. Ou ainda, melhor sequer nascer, do que vir para um mundo duro, injusto e perigoso como o nosso. Obviamente a sua provocação nos gera inquietações… Será que deveríamos olhar o real e confirmar o negativo que os nossos olhos veem? Será que deveríamos observar a terrível realidade dos fatos diante de nós e optarmos pela alienação, um escape ou o desejo de sairmos desse mundo ou de nunca ter vindo para cá? Não creio que a sabedoria bíblica deseje fomentar esse tipo de espiritualidade escapista. Até mesmo por conta do modo como Deus age em relação aos hebreus oprimidos, dos pobres, estrangeiros, viúvas e órfãos através dos profetas e em sua maior manifestação, Jesus de Nazaré, não parece razoável concordar com o sábio. Trata-se de mais uma de suas provocações. Para onde nos conduz as tristes observações do mestre em Eclesiastes? Não parece que estamos diante muitas opções. A realidade deve ser mudada. Não se pode afirmar o negativo. Deve-se negar o negativo para que nasça uma nova realidade, dessa vez positiva. Isso para que ninguém mais deseje morrer ou deseje não ter nascido. Para que possamos aguardar com expectativa as próximas gerações. Para que possamos descansar em paz por termos contribuído com um lugar social mais justo. Não há alternativas diante da difícil realidade que assombra o mundo.
Não podemos viver em um mundo de opressores – os poderosos – e oprimidos – os fracos, os pobres, os vulneráveis. É preciso avançar enquanto sociedade. Porém, primeiramente, é necessário sonhar e imaginar um novo mundo, sem opressores e sem oprimidos. Quem sabe seja exatamente isso que o sábio anseia instigar em nós… Diante do terrível real, somos estimulados a sonhar com um novo amanhã. A espiritualidade bíblica é mais encarnada do que muitos imaginam. A espiritualidade bíblica é perigosa, especialmente aos opressores, pois dela nascem semente de sonhos de um novo mundo, em que oprimidos são libertos historicamente. Que venha a libertação dos oprimidos hoje e que o amanhã nos reserve humanos livres ao nascer e ao morrer.
André Anéas