pastoral

A experiência da beleza

Meditações no Salmo 147

Fomos ensinados que Deus gosta de receber os nossos sacrifícios. Em algumas correntes cristãs isso é algo levado tão a sério que muito fiéis se mutilam para agradar ao Senhor. Porém, mesmo em correntes mais “normais”, “sacrificar a Deus” é uma constante.

Agrada o Eterno quem:

Faz longas horas de jejum (normalmente deixando de comer coisas prazerosas como chocolate); quem passa longos momentos de joelhos em oração; quem sacrifica o seu tempo com família e amigos para servir mais a Deus na igreja; quem termina um relacionamento amoroso para poder provar que ama a Deus; quem deixa de jogar bola com os amigos para ir aos cultos com frequência; quem deixa de ir ao parque aos domingos por ser o “Dia do Senhor”; quem rompe amizades de anos com pessoas que não são crentes; quem não assiste filme de terror para “fugir da aparência do mal”; quem deixa de ouvir “música do mundo” por ser do mundo e não de Deus… Enfim, a lista seria interminável de coisas que cristãos fazem ou deixam de fazer por “sacrifício” a Deus. O salmista sugere um outro caminho: entregar ao Eterno beleza! “O louvor é belo e apropriado a ele”, diz o salmista. A quem estamos cultuando? Um Deus que gosta do “sangue” dos sacrifícios? Ou um Deus amoroso que ama e espera receber amor em forma de beleza dos seus amados e amadas? O Eterno é aquele que: é libertador e resgatador de seu povo; é quem cura os feridos e sara as nossas feridas; é um Deus oniamante, tornando impossível compreendermos a profundidade de sua graça e misericórdia; Ele ergue os caídos; é movido por sua justiça; e, no ápice de sua manifestação graciosa, ao invés de pedir um sacrifício especial, Ele se fez sacrifício motivado exclusivamente pelo seu amor à humanidade. Ora, quem é esse Deus que, inclusive, encerra a possibilidade de novos sacrifícios em Seu sacrifício – autodoação – perfeito? Esse é o Eterno!

Diante da beleza de sua santidade, podemos experimentar a experiência da beleza, ofertando a Ele não nossas dores, mas nossa arte, nossos poemas e nossas canções: o belo para o Belo! Oferte hoje mesmo a Ele a beleza, que pode estar em uma história de amor, na sua brincadeira com os filhos, em uma cochilada após o almoço, em seu tempo de lazer em família, em um passeio no parque ou no jogar a bolinha para o seu cachorro. Que não falte inspiração para dar a Ele, que é Belo e Bom, toda a nossa criatividade, pois Ele é digno e se alegrará mais com a música de Bach do que dos nossos joelhos no milho. Viva a experiência da beleza.

Pr. André Anéas

A experiência da graça como justiça

Meditações no Salmo 146

Há quem diga que amigo verdadeiro se conta na palma de uma mão. À luz da experiência cotidiana não parece equivocada essa afirmação. Lealdade e confiança são virtudes preciosas e mesmo nas pessoas que mais acreditamos serem leais, pode existir falha de caráter. O salmista sabiamente faz um alerta cheio de sabedoria: não depositar nossa confiança nos humanos, especialmente os poderosos. Quem confia em homens poderosos está fadado a viver sob um solo movediço, cheio de incertezas e dúvidas acerca da lealdade deles para conosco, “meros mortais”. Viver uma vida confiando em absoluto em um político, em um nobre, em alguém famoso ou mesmo em uma pessoa próxima a nós é um erro, pois depositaremos nesse indivíduo tudo o que nos dá sentido, lhe entregando praticamente a nossa alma.

Em alguma medida essa “confiança cega” é fazer do humano em quem confiamos um “deus”. O salmista vai em sentido oposto, nos instigando a confiar no Eterno, pois nEle encontraremos um solo seguro para ser o guarda do nosso coração. Não é à toa que o salmista nos incentiva a adorar ao Altíssimo, pois nEle existe uma santidade perfeita, sem hipocrisia e que não está sujeita as oscilações de integridade que vemos nos humanos. Nele, no Criador, podemos confiar. Entretanto, esse pensamento cético em relação aos humanos não pode se tornar um pessimismo em relação ao progresso da humanidade. Em chave bíblico-teológica e cristã, podemos entender que Deus está pessoalmente comprometido com o melhor para os humanos. Assim, o salmista pode nos fazer pensar na experiência da graça como justiça. Embora não seja sábio confiar que o humano pela força do próprio humano irá ser leal e justo em suas decisões, tomando partido dos fracos, injustiçados, famintos, cegos e abatidos, certo é que o Senhor o fará! Tendo em mente que o Deus que dá testemunho nas Escrituras é aquele que, em sua santa justiça, advoga em favor do pobre, órfão, viúva e estrangeiro, podemos ler esse cuidado do Alto como graça divina. Uma vez sendo graça, desviamos a confiança dos humanos para o Deus que está comprometido com esse projeto histórico e concreto de transformação social. Mesmo em nossas falhas humanas, Ele se encarregará sempre de permanecer atuando em favor das vítimas desse mundo, pois sua justiça é graça.

Portanto, se podemos olhar para a nossa dura realidade e ainda assim esperançar, é porque a graça como justiça nos possibilita isso. Se podemos nos juntar a Ele nesse projeto do Reino, é graça dEle sobre nós. Louve e adore ao Eterno, pois Ele é bom e comprometido com o projeto de justiça aqui e agora, enfrentando os “Faraós” desse mundo em favor dos oprimidos.

Pr. André Anéas

A experiência da humildade

Meditações no Salmo 145

A vida é carrega de experiências terríveis, parte delas fruto dos nossos próprios erros.

Essas experiências sobrecarregam o nosso coração de raiva, frustração, tristeza e, até mesmo, ódio. Que ódio que dá bater um dedinho do pé em uma quina; que ódio é errar gravemente com o seu filho – falando o que não devia ser dito –; que ódio cometer um erro no trabalho. E assim por diante… Todo esse sentimento negativo é uma sombra sobre um outro tipo de sentimento: nossa soberba, arrogância e perfeccionismo. Não podemos nos dar ao luxo de errar e cometer erros, caso contrário, ficamos “melindrados” com nós mesmos. Em outras palavras, o que estamos a dizer é que nós somos o “centro do universo”. Não há nada mais contrário ao espírito do evangelho e da lógica bíblica do que isso. Esse olhar para si egoísta e autossuficiente não é capaz de mostrar ao humano que ele não é toda essa perfeição. A experiência da humildade brota justamente quando lidamos com quem somos em nossas frustrações e reconhecemos que existe um Alguém que verdadeiramente É. Esse “Alguém” é o Eterno e somente Ele.

Portanto, o exercício que o salmista faz em reconhecer que Ele é, é fundamental para discernirmos a possibilidade da humildade que deve habitar os corações daqueles que enaltecem ao Senhor. Humildade que está sempre pronta a dar a glória a Deus; humildade que reconhece que a vida é um eterno aprendizado; humildade que sabe reconhecer a própria pequenez; humildade que está pronta a assumir seu erro e que é errante. O olha ao Altíssimo envolve, necessariamente, uma postura de humildade, pois nEle não há limites, mas em nós existem muitos; nEle há eternidade, em nós finitude; nEle há beleza; em nós feiura por diversas vezes; nEle há bondade, em nós maldade; para Ele há aplausos; para nós vaias. No caminho da humildade – e somente nele – abre-se a rota da transformação, da mudança, de novos começos. Só pode melhorar quem é capaz de reconhecer suas próprias falhas. Que vivamos uma experiência da humildade autêntica, pois é nEle que somos forjados para sermos verdadeiramente melhores aos Seus olhos e não aos nossos próprios.

Pr. André Anéas

A experiência da capacitação

Meditações no Salmo 144

A vida é cheia de desafios que exigem muito de cada um de nós.

Desde as coisas mais corriqueiras, como cozinha e aprender a dirigir, até coisas mais sofisticadas, como estudar engenharia ou filosofia, precisamos de horas de esforço, leitura, madrugadas e muita dedicação para fazer tudo com excelência. É certa a afirmação que o humano precisa se esforçar para conquistar seus sonhos e adquirir habilidades na jornada da vida. “Quem cedo madruga…” tem suas vantagens. Entretanto, em chave cristã, é complicado quando o humano se ensoberbecer de si mesmo. É algo ruim quando nos tornamos autossuficientes, olhando a nós mesmos como que capaz de obter tudo o que precisamos na vida.

Ou seja, a espiritualidade cristã e bíblica parece nos alertar algo fundamental: nunca conseguimos tudo sozinhos. Longe de desencorajar alguém a perseverar em seus objetivos ou estimular uma preguiça nociva, existe uma série de elementos que não dependem de cada um de nós para vencermos as batalhas que temos na existência. O salmista faz afirmações importantíssimas nesse sentido, reconhecendo que o Eterno é quem treina as suas mãos, que treina os seus dedos para a batalha; que Deus é aliado dele na vida, uma fortaleza que o protege e o liberta; que o Senhor é escudo e refúgio. Quem ora vive a experiência da capacitação. Capacitação que vem do alto, nesse humano que discerne que o que ele faz nunca é mérito absoluto de si mesmo, mas que procede como graça da parte de Deus. Que é o humano para que o Altíssimo se importe com essas minúcias? Essa é a indagação de quem ora. Viver sob as asas do Eterno é experimentar o seu cuidado capacitador em meio ao esforço de fazer tudo o que fazemos. O “estar no lugar certo e na hora certa” pode ser discernido por esse cuidado de Deus. O cair na graça de um chefe, em toda a subjetividade que envolve os processos relacionais, também pode ser interpretado como graça divina. Aquele insight que brota em nossa mente em uma situação difícil e complexa, pode ser lido como um toque da bondade do Senhor em nós.

Aquela pessoa que nos ajudou gratuitamente e que partilhou generosamente do seu conhecimento e tempo, não fora a mão dEle?

Podemos conquistar muitas coisas na vida. Mas, devemos reconhecer: não foram somente os nossos méritos que tornaram possível essas realizações. A boa mão do Senhor nos capacitou com sua multiforme graça para termos sucesso em nossas atividades.

Bendito seja o nome do Eterno! Reconheça isso. Torna a vida bela e é sinal de humildade.

Pr. André Anéas

A experiência do salto da fé

Meditações no Salmo 143

Que é ter fé?

Erroneamente as linhas mais conhecidas do protestantismo pensam a fé como a certeza que temos em determinadas sentenças teológicas. Se eu crer de determinada maneira, em determinada confissão de fé, de uma maneira elaborada teologicamente x, y ou z, logo tenho fé. Nada mais distante da tradição bíblica. Dentro das orações dos salmistas é possível encontrar algo mais próximo do significado de fé.

Uma boa metáfora é “salto”.

Viver a experiência do salto da fé está mais aderente ao que se vê no testemunho de quem ora. A questão não é a formulação teológica. Isso é racionalismo de ar piedoso. A questão é se saltamos no abismo que está diante de nós. O salmista se mostra angustiado, amedrontado, cheio de inseguranças e dúvidas. Além disso, ele sabe que a sua moral não é suficiente para comprar o favor divino, por isso mesmo suplica para que o Eterno não o leve para juízo. Mesmo assim, com tantos elementos em desfavor, ele se lança em fé, ele salta para o Altíssimo, em uma confiança cega, em uma aposta alta, cujo custo é a vida como um todo.

Nesse saltar, a questão não é o que se crê, mas o como se crê. E como ele vive esse salto da fé? Vive de tal modo como se soubesse que salta para a graça de Deus. Salta em direção a misericórdia. Salta nos braços fortes que não está observando ainda, mas que, pela fé, estão lá. Salta como um servo, como um filho, como um amante do Amor. Salta confiante de que o Amor o amará. Viver a vida é uma experiência um tanto angustiante. Temos inseguranças. Temos medos. Fraquejamos diante da dor e dos sofrimentos. Nossa alma experimenta a angústia, que sequer sabemos de onde veio. Nesses instantes escuros na alma, somos convidados a viver a experiência do salto da fé. Não das certezas objetivas e racionalistas, dos decorebas infantis. Mas experimentar no interior de quem somos a possibilidade de, com coragem, viver pela fé em meio a todo tipo de aflição. Nas noites escuras da alma, saltemos, pois, no oceano da misericórdia do Senhor. Suplicar em silêncio. Suplicar, não somente sabendo, mas sendo pela fé, filhos e filhas de um Pai que nos ama em meio as dores da existência.

Pr. André Anéas

A experiência do abandono

Meditações no Salmo 142

Existem momentos em nossas vidas em que podemos vivenciar a experiência do abandono. Não se trata de um momento banal, corriqueiro. De fato, são situações ímpares, realmente difíceis do ponto de vista existencial. Dentro do ambiente familiar isso pode se manifestar em filhos que são abandonados pelos pais. Quem sabe não necessariamente um abandono literal, mas emocional. A percepção na alma de que não é possível mais contar emocionalmente com os pais biológicos devido a indiferença deles em relação ao filho ou filha. Dentro da vida relacional mais ordinária, relações de amizade são rompidas ou estremecidas diante da constatação de alguma parte que a deslealdade imperou. Como um sopro dentro do ser, se descobriu que o “amigo” ou “amiga” não cultivam a mesma dedicação, por assim dizer, àquela relação. Uma palavra, um gesto ou uma atitude acabam por revelar a verdade. Dentro do ambiente eclesiástico acontece com frequência. Por longos anos fraternidade. Por bons anos a harmonia. Diante das diferenças, entretanto, brota um tipo de incompatibilidade que germina a semente da rejeição. Quem padece isso dentro do ambiente eclesiástico corre sempre o risco de sentir-se abandonado pelo próprio Deus. Seja na família, nas amizades ou na igreja, a dor de quem se sente abandonado é incalculável. Perde-se, abruptamente, o suporte emocional de quem se amava. Fica, tão somente, uma sensação de vazio, permeada de questionamentos incessantes acerca do quanto essa história valeu a pena ser vivida. O estrago pode ser imenso, justificando mudança radicais na vida cotidiana. Não cabe o julgamento desses sentimentos aqui. Cabe o acolhimento dessa dor do abandonado. O salmista experimentou essa sensação terrível, em que conseguia apenas lamentar e apresentar a sua angústia ao Senhor. Desanimado, rememora a dor de não ser cuidado, os caminhos que o levaram para a solidão e uma dura certeza: ninguém se importa mais com ele. Só há uma saída, uma rota alternativa: olhar para o céu e clamar ao Altíssimo.

Provavelmente sentiremos nesses instantes a rejeição do alto também. Mas, na desesperança nasce a esperança. Mesmo em meio a sensação do abandono, há um Deus que escuta e que acolhe o abandonado. Nos mínimos detalhes, ouve com atenção o lamentar de quem ora. Trata-se de um Deus que se compadece e sofre junto com o sofredor. Sua benção é para com aquele ou aquela afligido pelo abandono, seja de quem for. Em Deus, não há solidão, mas companhia verdadeiro que tudo restaura, mesmo nos dias de maiores tempestades na alma de quem vive a experiência do abandono.

Pr. André Anéas

A experiência do Mistério

Meditações no Salmo 139

Gosto, particularmente, quando o salmista afirma que não está em condições de compreender plenamente o Eterno, uma vez que Ele é tão elevado e maravilhoso. Quem ora reconhece que o conhecimento que podemos obter acerca de Deus é um conhecimento sempre parcial, sempre envolto em mistério, para além de todo tipo de capacidade racional. Ao final da oração que escreve, ele compara Iavé com os ídolos. Ídolos podem ser manipuláveis, esculpidos, arquitetados e projetados para serem a nossa imagem e a nossa semelhança. Com o Senhor é diferente. Por quê? Por justamente Ele não se permitir se capturável por nossas mentes, permanecendo o que de fato Ele é e sempre será: Mistério. Isso não significa que não podemos saber absolutamente nada acerca de Deus, afinal, Ele mesmo se revelou para a humanidade.

Entretanto, essa Revelação nunca é plena, absoluta e definitiva. Deus, mesmo se revelando, permanece e perecerá Mistério. O salmista sinaliza dois elementos que se pode conhecer desse Deus misterioso. Primeiramente, que Ele é capaz de discernir que seu próprio ser é um “livro aberto” para o Senhor. Esse Mistério sabe e conhece. Esse Mistério nos sonda até as entranhas da nossa alma. O Mistério nos conhece. Assim, viver a experiência do Mistério é ser experimentado por Deus de tal forma que nada passa despercebido. Experimentar Deus é um se despir por completo, um estar nu. Tudo o que somos, pensamos e intentamos está debaixo dos olhares daquele que nos sonda. Quem ora sinaliza, em segundo lugar, que Ele é também Belo.

A maneira como Ele pensa, age, cria, se revela e é está cheia de beleza, de pureza, de alegria, de mansidão, de bondade, de amor. Nada em Iavé é feio e violento. Ele é o Amor, como disse João, o apóstolo. Ao mesmo tempo que Ele é cheio de poder, estando em todo lugar, enxergando no dia e na noite, na claridade e na escuridão, seu poder se manifesta imbuído de um tipo de Beleza eterna, profunda e complexa. Experimentar o Mistério é experimentar aquele que É e de quem nada podemos esconder, pois ele Está. É, igualmente, experimentar um Mistério que se revela de maneira terna, nos paralisando diante de um tipo de Amor que nos silencia, nos impedindo de buscar respostas e soluções, mas que nos faz, tão somente, silenciar e contemplar.

Pr. André Anéas

A experiência da Misericórdia

Nos dias maus, em que tudo dá errado, aprendemos que a confiança no Senhor é fundamental para a nossa jornada espiritual. Porém, existe a possibilidade do dia mau se estender. O tempo passa e os problemas permanecem. O tempo passa e os inimigos parecem só avançar. O tempo passa e a luz no fim do túnel da vida não nos ilumina em nada. Mesmo diante da profunda e prolongada tristeza, ainda assim as Escrituras nos desafiam a algo difícil: viver a experiência da misericórdia do Eterno. 

Quem experimenta essa realidade compreende que o Senhor não é um Deus sádico. Deus não se alegra com a nossa dor. Deus não sente prazer em ver a nossa tristeza. Deus não tem prazer com a dor alheia. Deus não é o autor do mal. Ele é misericordioso. Ele é um bálsamo sobre as feridas dos feridos. Ele é cura nas chagas dos aflitos. Ele é luz na alma cheia de trevas. Ele é a rota que nos afasta do castigo. Ele é o barco que conduz a bonança. Ele é a água fresca em meio aos desertos ensolarados. Ele é fonte de misericórdia hoje e sempre. Há misericórdia da parte de Deus! Mais que isso: nossa fé na misericórdia não será em vão. Não somente saber, mas desfrutar dessa misericórdia. Não somente olhar para Deus e crer que ele é misericordioso, mas estar em prontidão, cheios de expectativa, para a misericórdia que virá! Podemos confiar, podemos esperar: a misericórdia do Senhor não nos decepcionará.

Nas pequenas situações e nas mais complexas questões existenciais, Deus não cessará em manifestar a sua misericórdia para conosco. Cabe uma ressalva: não sabemos como e nem quando. Nem sempre entenderemos os caminhos da vida, os rumos da embarcação que nos leva, e os porquês das dores que sentimos ou o porquê de elas persistirem e insistirem em nos machucar. Entretanto, podemos confiar, podemos esperar, podemos pedir, pois o Deus da misericórdia a derrubará sobre as nossas vidas. Assim, que esperemos com expectativa a onda misericordiosa do Eterno nos imergir em sua bondade, pois aquele que promete cumpre.

A experiência da indignação

Meditações no Salmo 137

Não é sábio romantizar o texto bíblico. A romantização das Escrituras corrompe nossa leitura e nos impede de acessarmos as profundezas do texto sagrado. A beleza desse salmo é invadida pela indignação de quem ora e anseia por vingança – e não é qualquer uma! O salmista é conduzido em sua ira a clamar por uma recompensa a quem atirar os bebês dos babilônios contra as rochas. É absolutamente óbvio que esse tipo de desejo está na contramão da graça reverberada no evangelho de Jesus Cristo. Entretanto, nem sempre saber algo significa ter nossos sentimentos e emoções conformados com a teoria. Essa idealização, em que tudo o que sabemos se torna, automaticamente, tudo o que sentimos, nos desumaniza.

Diante da dor de ser arrancado de sua terra natal – Jerusalém –, forçado a entreter os invasores com músicas que relembram a Cidade Santa e com o peito ferido de tanta saudade, vive a experiência da indignação. Na sua indignação, que nada mais é do que um inconformismo visceral pela situação em estava, ele rasga sua alma ao Altíssimo em uma oração politicamente incorreta. Essa face humana do salmista está dentro de uma tentativa de os textos bíblicos sinalizarem para todos nós as faces da nossa própria humanidade. Enquanto lemos o texto, o texto nos lê. Quem não ficou indignado justamente por vários tipos de questões na vida? Quem nunca se revoltou diante de realidade maldosas, perversas e radicalmente antiéticas? Quem nunca se enfureceu com a maldade de um outro humano contra nós, nossos familiares, nossos amigos e amigas? Quem não se enfureceu com a ganância humana, com as injustiças, com as atrocidades praticadas em nome do amor ao poder e dinheiro (às vezes travestido de “deus”)? É justa nossa indignação? Responderia que é humana.

Aprendemos com quem ora aqui que vomitar nossa indignação aos céus é um caminho possível e genuíno da nossa espiritualidade. Enterrar essa indignação em nossa alma, sem lançá-la para fora, nos desumaniza. Nenhum tipo de desumanização condiz com a espiritualidade bíblica. A espiritualidade que agrada a Deus tem relação com a sinceridade e honestidade de quem somos. Aprendemos também que as coisas mais terríveis que nos habitam não são omitidas de Deus em nossas preces. Ao contrário, são lançadas diante do Senhor. Não oramos para parecermos bonzinhos. Oramos o que estamos sentindo em cada momento, em cada circunstância. Além disso, a oração do salmista ensina que o Eterno está perto em todos os momentos, acolhendo nossa indignação-oração. Por fim, devemos lembrar que nem tudo que está nas Escrituras deve ser entendido e aplicado literalmente, especialmente à luz da Palavra – Jesus! Afinal, nem tudo que a letra diz condiz com o Espírito da graça. Da mesma forma, nem tudo o que oramos estará, necessariamente, alinhado com a melhor teologia e ensino evangélico. Quem disse que nossas preces são uma aula de teologia? Somos humanos.

Ore como humano. Entretanto, lembre-se de se deixar ser permeado pelo Espírito que intercede por você, lhe transformando no humano que haveremos de ser um dia.

Pr. André Anéas

A experiência religiosa

Meditações no Salmo 135

A religião institucional deve ser sempre criticada. Não se trata de uma crítica tola e irresponsável. Historicamente sabemos muito bem que as melhores intenções religioso-institucionais podem e foram deturpadas por interesses egoístas e mesquinhos por parte da classe religiosa detentora de poder. É fato a violência em nome de “Deus”, subsidiada com a força do poder religioso. É fato também a contradição entre o amor e as instituições religiosas, que suplantam os interessem dos outros, por seus próprios interesses. Por isso, a crítica é sempre pertinente, inclusive com o propósito de mitigar o risco de que esse mal volte a ocorrer e se instaurar, desvirtuando a religião. Isso não significa que a religião deva ser eliminada ou que não exista um lado positivo nas instituições religiosas. Se bem compreendida e organizada de modo equilibrado e saudável, existem elementos muito benéficos nas religiões. É justamente esse lado positivo da religião que o salmista destaca, em sua oração cheia de elementos presentes na vida dos religiosos. As convocações do salmista são sempre no plural. Ninguém cultua sozinho.

A religião proporciona encontro, comunhão com o diferente, uma vivência genuinamente comunitária. Ninguém experimenta a fé cristã individualmente, mas sempre no ajuntamento. O salmista também destaca a música entoada para o Eterno. O ambiente litúrgico que acontece nos cultos acontece por causa da religião, que organiza a liturgia para que a comunidade dos que creem adorem e deem testemunho de que são povo de Deus. Nesse espaço litúrgico, a presença de Deus se manifesta de modo místico, pois Deus está no meio do povo. A religião é o local da preservação da memória. Nas festas de Páscoa e do Natal somos levados a rememorar nossa tradição. Por exemplo, ao repetirmos todos os meses a Ceia do Senhor, preservamos a memória desse acontecimento singular que sustenta a esperança da comunidade. As novas gerações aprendem as histórias, os símbolos, de modo que nada se perde, mas é levado adiante de geração em geração. Por fim, é no espaço religioso que se reflete a fé comunitariamente.

Se abre a Bíblia, se estuda o texto perguntas são feitas. Tudo isso contribui para a fé se tornar mais madura e sólida. Somente com reflexão que Deus jamais se torna obsoleto. Somente com reflexão nos tornamos preparados para falar do Altíssimo para todos e todas. A religião tem um lado perverso e deve sim ser criticada. Entretanto, há um lado bom, que, se bem trabalhado, tornará a fé do povo no Eterno ainda mais profunda.

Viva sua vida religiosa com intensidade. Ame a sua igreja local. Desfrute ao máximo do lado bom da religião e viva a experiência da religião.

Pr. André Anéas